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Um Trono para IrmГЈs
Morgan Rice


Um Trono para IrmГЈs #1
Morgan Rice surgiu com o que promete ser mais uma série brilhante, submergindo-nos numa fantasia de valentia, honra, coragem, magia e fé no seu destino. Morgan conseguiu mais uma vez produzir um conjunto forte de personagens que nos faz torcer por eles em todas as páginas… Recomendado para a biblioteca permanente de todos os leitores que adoram uma fantasia bem escrita. Books and Movie Reviews, Roberto Mattos, (sobre a Ascensão dos Dragões) De Morgan Rice, Bestseller #1, chega uma nova série inesquecível de fantasia. Em UM TRONO PARA IRMÃS (Livro um), Sophia, 17, e a sua irmã mais nova Kate, 15, estão desesperadas para sair do seu orfanato horrível. Órfãs, indesejadas e mal-amadas, elas, ainda assim, sonham em chegar à maioridade noutro lugar, em encontrar uma vida melhor, mesmo se isso significar viver nas ruas da cidade brutal de Ashton. Sophia e Kate, também melhores amigas, apoiam-se uma à outra – e, ainda assim, querem coisas diferentes da vida. Sophia, uma romântica, mais elegante, sonha em entrar para a corte e encontrar um nobre por quem se apaixonar. Kate, uma lutadora, sonha em dominar a espada, em combater dragões, e em se tornar uma guerreira. Ambas estão unidas, porém, pelo seu poder secreto e paranormal de ler as mentes dos outros, a sua única graça de salvação num mundo que parece inclinado a destruí-las. À medida que cada uma delas embarca numa missão e se aventura à sua própria maneira, elas lutam por sobreviver. Confrontadas com escolhas que nenhuma delas podia imaginar, as suas escolhas podem impulsioná-las para o maior poder - ou mergulhá-las para as profundezas. UM TRONO PARA IRMÃS é o primeiro livro de uma deslumbrante nova série de fantasia repleta de amor, desgosto, tragédia, ação, magia, feitiçaria, destino e suspense de tirar o fôlego. Um livro que não se quer parar de ler, ele é preenchido com personagens que vão fazer com que você se apaixone, e com um mundo que você nunca vai esquecer. Livro n. º 2 – UMA CORTE PARA LADRÕES – será publicado brevemente. Uma ação carregada de fantasia que irá certamente agradar aos fãs das histórias anteriores de Morgan rice, juntamente com os fãs de trabalhos tais como O Ciclo da Herança de Christopher Paolini…Fãs de ficção para jovens adultos irão devorar este último trabalho de Rice e suplicar por mais. The Wanderer, A Literary Journal (sobre a Ascensão dos Dragões)







UM TRONO PARA IRMГѓS



(LIVRO 1)



MORGAN RICE


Morgan Rice



Morgan Rice é a best-seller nº1 e a autora do best-selling do USA TODAY da série de fantasia épica O ANEL DO FEITICEIRO, composta por dezassete livros; do best-seller nº1 da série OS DIÁRIOS DO VAMPIRO, composta por doze livros; do best-seller nº1 da série TRILOGIA DA SOBREVIVÊNCIA, um thriller pós-apocalíptico composto por três livros; da série de fantasia épica REIS E FEITICEIROS, composta por seis livros; e da série de fantasia épica DE COROAS E GLÓRIA, composta por oito livros; e da nova série de fantasia épica UM TRONO PARA IRMÃS. Os livros de Morgan estão disponíveis em edições áudio e impressas e as traduções estão disponíveis em mais de 25 idiomas.

Morgan adora ouvir a sua opinião, pelo que, por favor, sinta-se à vontade para visitar www.morganricebooks.com (http://www.morganricebooks.com) e juntar-se à lista de endereços eletrónicos, receber um livro grátis, receber ofertas, fazer o download da aplicação grátis, obter as últimas notícias exclusivas, ligar se ao Facebook e ao Twitter e manter-se em contacto!


Seleção de aclamações para Morgan Rice



"Se pensava que já não havia motivo para viver depois do fim da série O ANEL DO FEITICEIRO, estava enganado. Em A ASCENSÃO DOS DRAGÕES Morgan Rice surgiu com o que promete ser mais uma série brilhante, fazendo-nos imergir numa fantasia de trolls e dragões, de valentia, honra, coragem, magia e fé no seu destino. Morgan conseguiu mais uma vez produzir um conjunto forte de personagens que nos faz torcer por eles em todas as páginas… Recomendado para a biblioteca permanente de todos os leitores que adoram uma fantasia bem escrita."

--Books and Movie Reviews

Roberto Mattos



"Uma ação carregada de fantasia que irá certamente agradar aos fãs das histórias anteriores de Morgan rice, juntamente com os fãs de trabalhos tais como O CICLO DA HERANÇA de Christopher Paolini…Fãs de ficção para jovens adultos irão devorar este último trabalho de Rice e suplicar por mais."

--The Wanderer, A Literary Journal (referente a AscensГЈo dos DragГµes)



"Uma fantasia espirituosa que entrelaça elementos de mistério e intriga no seu enredo. A Busca de Heróis tem tudo a ver com a criação da coragem e com a compreensão do propósito da vida que leva ao crescimento, maturidade e excelência… Para os que procuram aventuras de fantasia com sentido, os protagonistas, estratagemas e ações proporcionam um conjunto vigoroso de encontros que se relacionam com a evolução de Thor desde uma criança sonhadora a um jovem adulto que procura sobreviver apesar das dificuldades… Apenas o princípio do que promete ser uma série de literatura juvenil épica."

--Midwest Book Review (D. Donovan, eBook Reviewer)



"O ANEL DO FEITICEIRO tem todos os ingredientes para um sucesso instantâneo: enredos, intrigas, mistério, valentes cavaleiros e relacionamentos que florescem repletos de corações partidos, decepções e traições. O livro manterá o leitor entretido por horas e agradará a pessoas de todas as idades. Recomendado para a biblioteca permanente de todos os leitores do género de fantasia."

--Books and Movie Reviews, Roberto Mattos.



"Neste primeiro livro cheio de ação da série de fantasia épica Anel do Feiticeiro (que conta atualmente com 14 livros), Rice introduz os leitores ao Thorgrin "Thor" McLeod de 14 anos, cujo sonho é juntar-se à Legião de Prata, aos cavaleiros de elite que servem o rei... A escrita de Rice é sólida e a premissa intrigante."

--Publishers Weekly


Livros de Morgan Rice



O CAMINHO DA ROBUSTEZ

APENAS OS DIGNOS (Livro #1)



UM TRONO PARA IRMГѓS

UM TRONO PARA IRMГѓS (Livro #1)

UMA CORTE PARA LADRAS (Livro #2)

UMA CANÇÃO PARA ORFÃS (Livro #3)



DE COROAS E GLГ“RIA

ESCRAVA, GUERREIRA, RAINHA (Livro #1)

VADIA, PRISIONEIRA, PRINCESA (Livro #2)

CAVALEIRO, HERDEIRO, PRГЌNCIPE (Livro #3)

REBELDE, PEГѓO, REI (Livro #4)

SOLDADO, IRMГѓO, FEITICEIRO (Livro #5)

HEROГЌNA, TRAIDORA, FILHA (Livro #6)

GOVERNANTE, RIVAL, EXILADA (Livro #7)

VENCEDORA, DERROTADA, FILHO (Livro #8)



REIS E FEITICEIROS

A ASCENSГѓO DOS DRAGГ•ES (Livro #1)

A ASCENSГѓO DOS BRAVOS (Livro #2)

O PESO DA HONRA (Livro #3)

UMA FORJA DE VALENTIA (Livro #4)

UM REINO DE SOMBRAS (Livro #5)

A NOITE DOS CORAJOSOS (Livro #6)



O ANEL DO FEITICEIRO

EM BUSCA DE HERГ“IS (Livro #1)

UMA MARCHA DE REIS (Livro #2)

UM DESTINO DE DRAGГ•ES (Livro #3)

UM GRITO DE HONRA (Livro #4)

UM VOTO DE GLГ“RIA (Livro #5)

UMA CARGA DE VALOR (Livro #6)

UM RITO DE ESPADAS (Livro #7)

UM ESCUDO DE ARMAS (Livro #8)

UM CÉU DE FEITIÇOS (Livro #9)

UM MAR DE ESCUDOS (Livro #10)

UM REINADO DE AÇO (Livro #11)

UMA TERRA DE FOGO (Livro #12)

UM GOVERNO DE RAINHAS (Livro #13)

UM JURAMENTO DE IRMГѓOS (Livro #14)

UM SONHO DE MORTAIS (Livro #15)

UMA JUSTA DE CAVALEIROS (Livro #16)

O DOM DA BATALHA (Livro #17)



TRILOGIA DE SOBREVIVГЉNCIA

ARENA UM: TRAFICANTES DE ESCRAVOS (Livro #1)

ARENA DOIS (Livro #2)

ARENA TRГЉS (Livro #3)



VAMPIRO, APAIXONADA

ANTES DO AMANHECER (Livro #1)



MEMГ“RIAS DE UM VAMPIRO

TRANSFORMADA (Livro #1)

AMADA (Livro #2)

TRAГЌDA (Livro #3)

PREDESTINADA (Livro #4)

DESEJADA (Livro #5)

COMPROMETIDA (Livro #6)

PROMETIDA (Livro #7)

ENCONTRADA (Livro #8)

RESSUSCITADA (Livro #9)

ALMEJADA (Livro #10)

DESTINADA (Livro #11)

OBCECADA (Livro #12)


Sabia que eu já escrevi múltiplas séries? Se não leu todas as minhas séries, clique na imagem abaixo e faça o download do primeiro livro de cada série!






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Copyright © 2017 por Morgan Rice. Todos os direitos reservados. Exceto conforme permitido pela Lei de Direitos de Autor dos EUA de 1976, nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, ou armazenada numa base de dados ou sistema de recuperação, sem a autorização prévia da autora. Este e-book é licenciado para o seu uso pessoal. Este e-book não pode ser revendido ou cedido a outras pessoas. Se quiser compartilhar este livro com outra pessoa, por favor, compre uma cópia adicional para cada destinatário. Se está a ler este livro e não o comprou, ou se ele não foi comprado apenas para seu uso pessoal, por favor, devolva-o e adquira a sua própria cópia. Obrigado por respeitar o trabalho árduo desta autora. Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, empresas, organizações, lugares, eventos e incidentes são produto da imaginação da autora ou foram usados de maneira fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é mera coincidência.


CONTEГљDO



CAPГЌTULO UM (#u1a9ad322-2169-54cb-9ce8-ba55d65a61a0)

CAPГЌTULO DOIS (#u1d63d934-69ab-5155-b645-79bf52320f27)

CAPГЌTULO TRГЉS (#uc9076f88-ce5d-59e2-938b-2c8bfa5bd354)

CAPГЌTULO QUATRO (#u42660f4a-7be2-5a79-948f-e77a83c8f306)

CAPГЌTULO CINCO (#u6837018d-8164-5e90-8a68-7770915884e7)

CAPГЌTULO SEIS (#u61d77cb1-8763-5772-8bc2-3113461db5c9)

CAPГЌTULO SETE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO OITO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO NOVE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZ (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO ONZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DOZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TREZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO CATORZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO QUINZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZASSEIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZASSETE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZOITO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZANOVE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E UM (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E DOIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E TRГЉS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E QUATRO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E CINCO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E SEIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E SETE (#litres_trial_promo)




CAPГЌTULO UM


De todas as coisas que havia para odiar na Casa dos Não Reclamados, a roda de moagem era a que Sophia mais temia. Ela gemia enquanto empurrava com força um braço ligado ao poste gigante que desaparecia no chão, enquanto ao seu redor, as outras órfãs empurravam com impulso os deles. Empurrá-lo magoava-a e fazia transpirar, o seu cabelo ruivo a ficar embaraçado com o trabalho, o seu vestido cinzento e gasto ainda mais manchando com o suor. O seu vestido estava mais curto do que ela queria agora, subindo involuntariamente a cada passo e mostrando a tatuagem na sua barriga da perna com a forma de uma máscara, marcando-a como ela era: uma órfã, uma coisa possuída.

As outras miúdas ali tinham coisas ainda piores. Aos dezassete anos, Sophia era pelo menos uma das mais velhas e das maiores. A única pessoa mais velha no quarto era a Irmã O'Venn. A freira da Deusa Mascarada usava o hábito negro como o azeviche da sua ordem, juntamente com uma máscara de renda através da qual, todas as órfãs rapidamente perceberam, ela conseguia ver, até ao menor detalhe da falha. A irmã segurou a correia de couro com a qual costumava punir, flexionando-a entre as suas mãos enquanto ela zumbia num barulho de fundo, proferindo as palavras do Livro das Máscaras, homilias sobre a necessidade de aperfeiçoar almas abandonadas como elas

“Neste lugar, vocês aprendem a ser úteis” entoou ela. “Neste lugar, vocês aprendem a ser valiosas, como não vos ensinaram essas mulheres caídas em desgraça que vos deram à luz. A Deusa Mascarada diz-nos que devemos moldar o nosso lugar no mundo através dos nossos esforços, e hoje os vossos esforços rodam os pequenos moinhos manuais que moem o milho e... presta atenção, Sophia!”

Sophia encolheu-se ao sentir o impacto do cinto dela a estalar. Ela cerrou os dentes. Quantas vezes Г© que as irmГЈs jГЎ lhe tinham batido ao longo da sua vida? Por fazer a coisa errada, ou por nГЈo fazer o que Г© certo suficientemente rГЎpido? Por ser suficientemente bonita ao ponto de isso constituir um pecado em si mesmo? Por ter a chama de uma ruiva que causa problemas?

E se elas soubessem sobre o seu talento. Ela estremeceu ao pensar nisso. Se assim fosse, elas tГЄ-la-iam espancado atГ© a morte.

“Estás a ignorar-me, sua idiota?” a freira exigiu. Ela batia-lhe sem parar. “Ajoelhem-se de frente para a parede, todas vocês!”

Essa era a pior parte: nГЈo importava se fazias tudo bem. As irmГЈs iriam bater em todas pelas falhas de uma miГєda.

“Vocês precisam que vos recordem” disse a Irmã O'Venn, quando Sophia ouviu uma miúda gritar, “do que vocês são. De onde vocês estão.” Outra miúda gemeu quando a correia de couro atingiu a sua carne. “Vocês são as crianças que ninguém quis. Vocês são propriedade da Deusa Mascarada, a quem foi dado um lar através da sua graça.”

Ela percorreu o quarto em redor, e Sophia sabia que ela seria a última. A ideia era fazê-la sentir-se culpada pela dor das outras, e dar-lhes tempo para a odiarem por ela as ter colocado naquela situação, antes de lhe dar uma tareia.

A tareia pela qual ela estava ali ajoelhada Г  espera.

Quando ela poderia simplesmente se ir embora.

Esse pensamento veio a Sophia tГЈo sem aviso que ela teve de verificar que nГЈo era um tipo de envio da sua irmГЈ mais nova, ou que ela nГЈo o apanhara de uma das outras. Esse era o problema com um talento como o dela: vinha quando queria, e nГЈo quando chamado. No entanto, parecia que o pensamento era realmente dela e, mais do que isso, era verdade.

Era melhor arriscar a morte do que ficar ali mais um dia.

Claro, se ela ousasse a ir-se embora, a punição seria pior. Elas encontravam sempre uma maneira de a tornar pior. Sophia tinha visto miúdas que haviam roubado ou ripostado a morrer de fome durante dias, forçadas a ficar ajoelhadas, espancadas quando tentavam dormir.

Mas ela jГЎ nГЈo se importava. Algo dentro dela tinha passado uma linha. O medo nГЈo conseguia tocar em si, porque estava submerso no medo do que aconteceria em breve, de qualquer das maneiras.

Afinal, ela hoje fazia dezassete anos.

Ela já tinha idade suficiente para pagar a sua dívida de anos de “cuidado” nas mãos das freiras - para ser treinada e vendida como gado. Sophia sabia o que acontecia as órfãs que atingiam a maioridade. Comparado com isso, nenhuma tareia importava.

Ela andava a pensar nisto incessantemente hГЎ semanas, na verdade. A temer este dia, o dia do seu aniversГЎrio.

E agora tinha chegado.

Para seu próprio choque, Sophia agiu. Ela permaneceu calma, olhou em redor. A atenção da freira estava noutra miúda, chicoteando-a selvaticamente, pelo que rapidamente ela se escapou para a porta em silêncio. Provavelmente mesmo as outras miúdas não notaram, ou se o fizeram, ficaram muito assustadas para dizer alguma coisa.

Sophia entrou num dos corredores brancos e modestos do orfanato, movendo-se silenciosamente, afastando-se da sala de trabalho. Havia outras freiras lГЎ fora, mas, desde que ela se movesse com propГіsito, tal poderia ser suficiente para evitar que elas a parassem.

O que Г© que ela tinha acabado de fazer?

Sophia continuou a caminhar pela Casa dos Não Reclamados aturdida, mal capaz de acreditar que ela estava realmente a fazer isto. Havia razões pelas quais eles não se incomodavam em trancar os portões da frente. A cidade além, logo depois dos seus portões, era um lugar austero - e ainda mais austero para aqueles que tinham começado a vida coma órfãos. Ashton tinha os ladrões e bandidos de todas as cidades - mas também continha os perseguidores que recapturavam os órfãos que fugiam e as pessoas livres que lhe cuspiriam para cima simplesmente pelo que ela era.

E depois, havia a sua irmГЈ. Kate tinha apenas quinze anos. Sophia nГЈo queria arrastГЎ-la para algo pior. Kate era dura, atГ© mais dura do que Sophia, mas ainda assim era a sua pequena irmГЈ.

Sophia deambulou atГ© aos claustros e atГ© ao pГЎtio onde elas se misturaram com os rapazes do orfanato ao lado, tentando descobrir onde estaria a sua irmГЈ. Ela nГЈo podia ir-se embora sem ela.

Ela estava quase lГЎ quando ouviu uma miГєda a gritar.

Sophia dirigiu-se para o som, meio suspeitando que a sua pequena irmГЈ se tivesse metido noutra luta. Quando ela chegou ao pГЎtio, no entanto, ela nГЈo encontrou Kate no centro de uma multidГЈo de bruxas, mas outra miГєda. Esta era ainda mais jovem, talvez com treze anos, e estava a ser empurrada e esbofeteada por trГЄs rapares que jГЎ deviam ter quase idade suficiente para serem vendidos para treinos ou para o exГ©rcito.

“Parem com isso!” gritou Sophia, surpreendendo-se a si própria tanto quanto pareceu surpreender os rapazes que ali estavam. Normalmente, a regra era que se ignorasse o que quer que fosse que estivesse a acontecer no orfanato. Era que se ficasse quieto e se lembrasse do seu lugar. Agora, porém, ela aproximou-se.

“Deixem-na.”

Os rapazes pararam, mas apenas para olharem para ela.

O mais velho colocou os seus olhos sobre ela com um sorriso malicioso.

“Bem, bem, rapazes” disse ele, “parece que temos mais outra que não está onde deveria estar.”

Ele tinha feições contundentes e o tipo de olhar morto nos seus olhos que só se tinha por passar muitos anos na Casa dos Não Reclamados.

Ele deu um passo em frente e, antes que Sophia conseguisse reagir, ele agarrou-lhe o braço. Ela ia-lhe dar uma bofetada, mas ele foi demasiado rápido, e empurrou-a para o chão. Era em momentos como este que Sophia desejava ter as habilidades de luta da sua irmã mais nova, a sua capacidade de convocar uma brutalidade instantânea que Sophia, com toda a sua astúcia, simplesmente não era capaz.

Vai ser vendida como uma prostituta de qualquer maneira...talvez tambГ©m tenha a minha vez.

Sophia ficou alarmada ao ouvir os pensamentos dele. Estes pareciam quase imorais, e ela sabia que eram dele. O seu pГўnico aumentou.

Ela começou a lutar, mas ele prendia-lhe os braços com facilidade.

Havia apenas uma coisa que ela podia fazer. Ela desconcentrou-se, convocando o seu talento, esperando que desta vez resultasse.

Kate, ela enviou, o pГЎtio! Ajuda-me!



***



“Com mais elegância, Kate!” exclamou a freira. “Com mais elegância!”

Kate não tinha muito tempo para a elegância, mas ainda assim, ela fez o esforço enquanto servia água para uma taça que a irmã segurava. A Irmã Yvaine observava-a criticamente sob a sua máscara.

“Não, ainda não estás a fazer bem. E eu sei que não és desajeitada, miúda. Eu já te vi a fazer a roda no pátio.”

No entanto, ela nГЈo puniu Kate por isso, o que sugeria que a IrmГЈ Yvaine nГЈo era uma das piores. Kate tentou novamente, com a mГЈo a tremer.

Ela e as outras miúdas que estavam com ela deveriam estar a aprender a servir elegantemente em mesas nobres, mas a verdade era que Kate não tinha sido feita para isso. Ela era demasiado baixa e musculada para o tipo de feminilidade graciosa que as freiras tinham em mente. Havia uma razão pela qual ela mantinha curto o seu cabelo ruivo. No mundo ideal, onde ela era livre para escolher, ela ansiava por aprender com um ferreiro ou talvez com um dos grupos de atores que trabalhavam na cidade - ou talvez até ter a oportunidade de entrar no exército como os rapazes faziam. Este servir de água gracioso era o tipo de lição que a sua irmã mais velha, com o seu sonho de aristocracia, teria gostado - não ela.

Como se o pensamento a tivesse convocado, Kate, de repente, despertou ao ouvir a voz da irmГЈ na sua mente. Ela questionou-se, porГ©m; o talento delas nem sempre era assim tГЈo confiГЎvel.

Mas então voltou a acontecer, e lá, também, estava a sensação por detrás disso.

Kate, o pГЎtio! Ajuda-me!

Kate conseguia sentir que ela estava com medo.

Ela afastou-se da freira bruscamente, involuntariamente, e, ao fazГЄ-lo, derramou a sua jarra de ГЎgua na pedra do chГЈo.

“Desculpa” disse ela. “Eu preciso de ir.”

A IrmГЈ Yvaine ainda estava a olhar fixamente para a ГЎgua.

“Kate, limpa isto imediatamente!”

Mas Kate jГЎ estava a correr. Ela provavelmente iria ser espancada por isso mais tarde, mas ela jГЎ tinha sido espancada antes. Isso nГЈo significava nada. Mas ajudar a Гєnica pessoa no mundo com quem ela se importava jГЎ significava.

Ela correu pelo orfanato. Ela conhecia o caminho, porque ela tinha aprendido todas as voltas deste lugar durante todos aqueles anos desde aquela noite horrível em que a deixaram aqui. Ela também, na noite tardia, escapulia-se do interminável ressonar e fedor do dormitório quando conseguia, desfrutando o lugar na escuridão quando ela era a única levantada, quando o toque dos sinos da cidade era o único som, e aprendendo a sensação de cada recanto nas suas paredes. Ela sentia que iria precisar disso um dia.

E agora ela precisava.

Kate conseguia ouvir o som da sua irmã, a lutar e a pedir ajuda. Por instinto, ela baixou-se e entrou para uma sala apanhando um atiçador da lareira e continuando. O que ela ia fazer com ele, ela não sabia.

Ela emergiu no pátio, e ficou destroçada ao ver a sua irmã a ser imobilizada no chão por dois rapazes, enquanto outro remexia desajeitadamente no seu vestido.

Kate sabia exatamente o que fazer.

Uma raiva primitiva apoderou-se de si, uma que ela não conseguia controlar se quisesse, e Kate correu para a frente com um rugido, dando balanço ao atiçador para a cabeça do primeiro rapaz. Ele virou-se quando Kate atacou, pelo que o atiçador não o atingiu tão bem quanto ela queria, mas ainda foi o suficiente para atirá-lo ao chão, com ele a agarrar-se ao local que ela tinha atingido.

Ela atacou outro, apanhando-o pelo joelho enquanto ele estava de pГ©, fazendo-o cair. Ela atacou o terceiro no estГґmago, atГ© ele ficar de joelhos.

Ela continuou a bater, não querendo dar aos rapazes nenhum tempo para recuperarem. Ela havia estado em muitas lutas nos seus anos no orfanato, e ela sabia que não podia confiar no tamanho ou na força. A fúria era a única coisa que a salvava. E, felizmente, disso, Kate tinha muita.

Ela atacou sem parar, atГ© os rapazes retrocederem. Eles poderiam estar preparados para se juntar ao exГ©rcito, mas os IrmГЈos Mascarados do lado deles nГЈo os ensinaram a lutar. Isso tГЄ-los-ia tornado muito difГ­ceis de controlar. Kate bateu no rosto de um dos rapazes, depois girou para trГЎs atingindo o cotovelo de outro com um ferro que fez um estrondo no osso.

“Levanta-te” disse ela à sua irmã, estendendo-lhe a mão. “Levanta-te!”

A sua irmГЈ levantou-se entorpecida, agarrando a mГЈo de Kate como se ela fosse a irmГЈ mais nova por uma vez.

Kate desatou a correr, e a sua irmГЈ correu com ela. Sophia parecia voltar a si mesma enquanto elas corriam, e alguma da velha certeza parecia regressar Г  medida que elas corriam pelos corredores do orfanato.

AtrГЎs delas, Kate conseguia ouvir gritos, de rapazes ou de irmГЈs ou de ambos. Ela nГЈo se importava. Ela sabia que sГі lhe restava fugir.

“Não podemos voltar” disse Sophia. “Nós temos de deixar o orfanato.”

Kate assentiu. Algo como isto não custaria apenas um espancamento como punição. Mas então Kate lembrou-se.

“Então vamos” respondeu Kate, correndo. “Primeiro eu só preciso de...”

“Não” disse Sophia. “Não há tempo. Deixa tudo. Precisamos de ir.”

Kate abanou a cabeça. Havia algumas coisas que ela não poderia deixar para trás.

Então, em vez disso, ela correu na direção do seu dormitório, segurando o braço de Sophia para que ela a seguisse.

O dormitГіrio era um lugar sombrio, com camas que eram pouco mais do que ripas de madeira a saГ­rem da parede como prateleiras. Kate nГЈo era estГєpida ao ponto de colocar qualquer coisa que importasse na arca pequena aos pГ©s da cama, onde qualquer pessoa conseguiria roubГЎ-la. Em vez disso, ela dirigiu-se a uma fenda entre duas tГЎbuas do chГЈo, enfiando lГЎ os dedos atГ© uma levantar.

“Kate” resmungou e soprou Sophia, recuperando a sua respiração, “não há tempo.”

Kate abanou a cabeça.

“Eu não vou deixar isto aqui.”

Sophia tinha de saber o que Г© que ela tinha ido buscar; a Гєnica memГіria que ela tinha daquela noite, da antiga vida delas.

Finalmente, o dedo de Kate enrolou-se Г  volta de metal, e ela levantou o medalhГЈo completamente para este ficar a brilhar sob a fraca luz.

Quando ela era criança, ela tinha a certeza de que era ouro verdadeiro; uma fortuna à espera de ser gasta. Ao crescer, ela viria a perceber que era uma liga mais barata, mas, de qualquer das formas, à época, para ela o medalhão valia muito mais do que ouro. A miniatura lá dentro, de uma mulher sorridente enquanto um homem tinha a mão no ombro dela era a coisa mais próxima de uma lembrança que ela tinha dos seus pais.

Kate normalmente não o usava por medo de que uma das outras crianças, ou as freiras, o tirassem de si. Agora, ela aconchegou-o dentro do vestido.

“Vamos” disse ela.

Elas correram para a porta do orfanato, supostamente sempre aberta, porque a Deusa Mascarada tinha encontrado portas que estavam fechadas para si quando ela visitou o mundo e tinha condenado aqueles que estavam lГЎ dentro. Kate e Sophia correram pelas curvas e contracurvas dos corredores, saindo no pГЎtio da entrada, olhando em redor Г  procura de perseguidores.

Kate conseguia ouvi-los, mas naquele momento, apenas estava junto Г  porta a irmГЈ habitual: uma mulher gorda que se moveu para bloquear o caminho exatamente quando as duas se aproximaram. Kate ficou corada ao relembrar-se imediatamente de todos os anos de espancamentos que ela havia sofrido nas mГЈos dela.

“Aqui estão vocês” disse ela num tom severo. “Vocês foram ambas muito desobedientes e...”

Kate não fez uma pausa; ela atingiu-a no estômago com o atiçador, com força suficiente para ela se dobrar. Naquele momento, ela desejou que o atiçador fosse uma das espadas elegantes que usavam os cortesãos, ou talvez um machado. Mas assim, ela teve de se contentar por simplesmente atordoar a mulher o tempo suficiente para ela e Sophia passarem a correr.

Mas naquele momento, quando Kate atravessou as portas, ela parou.

“Kate!” gritou Sophia, com uma voz de pânico. “Vamos! O que é que estás a fazer?”

Mas Kate nГЈo conseguia controlГЎ-lo. Mesmo com os gritos dos que as perseguiam intensamente. Mesmo sabendo que tal arriscava a liberdade de ambas.

Ela deu dois passos para a frente, ergueu o atiçador e bateu nas costas da freira sem parar.

A freira grunhia e chorava a cada golpe, e cada som era mГєsica para os ouvidos de Kate.

“Kate!” implorou Sophia, à beira das lágrimas.

Kate olhou para a freira por um longo tempo, demasiado tempo, precisando entranhar essa imagem de vingança, de justiça, na sua mente. Ela sabia que isso a iria fazer aguentar quaisquer espancamentos horríveis que se pudessem seguir.

Então ela virou-se e desatou a fugir com a sua irmã da Casa dos Não Reclamados, como duas fugitivas de um navio a afundar-se. O fedor, o ruído e a agitação da cidade atingiam Kate, mas desta vez ela não abrandou.

Ela segurava a mГЈo da sua irmГЈ e corria.

E corria.

E corria.

E, apesar de tudo aquilo, ela respirou profundamente e sorriu amplamente.

Por muito pouco que pudesse durar, elas tinham encontrado a liberdade.




CAPГЌTULO DOIS


Sophia nunca tinha tido tanto medo, mas, ao mesmo tempo, nunca se tinha sentido tão viva, nem tão livre. Ao atravessar a cidade com a sua irmã, ela ouvia Kate a gritar de emoção, e isso tanto a deixava à vontade como a aterrorizava. Tal tornava isto muito real. A vida delas nunca mais seria a mesma.

“Não faças barulho” insistiu Sophia. “Vais fazer com que eles venham atrás de nós”.

“Eles vêm na mesma” respondeu a irmã. “Pelo que é melhor desfrutarmos.”

Como se para enfatizar o ponto, ela esquivou-se em torno de um cavalo, tirou uma maçã de uma carroça e correu pela calçada de Ashton.

A cidade estava movimentada com o mercado que ocorria a cada seis dias, e Sophia olhava em volta, maravilhada com todas as vistas, sons e cheiros. Se não fosse pelo mercado, ela não teria ideia de que dia era. Na Casa dos Não Reclamados, essas coisas não importavam, apenas os intermináveis ​​ciclos rotineiros de oração, trabalho, punição e aprendizagem.

Corre mais depressa, enviou a sua irmГЈ.

O som de assobios e gritos algures atrás delas incitou-as a uma nova velocidade. Sophia foi à frente por um beco, e, depois, esforçou-se para seguir Kate que trepou por cima de uma parede. A sua irmã, com toda a sua impetuosidade, era muito rápida, como um músculo sólido e em tumulto à espera de brotar.

Sophia mal conseguia trepar enquanto soavam mais assobios. Quando ela se aproximou do topo, a mГЈo forte de Kate estava Г  espera dela, como sempre. Mesmo nisto, ela apercebeu-se, elas eram tГЈo diferentes: a mГЈo de Kate era ГЎspera, calosa, musculada, enquanto os dedos de Sophia eram longos, suaves e delicados.

Dois lados da mesma moeda, a mГЈe delas costumava dizer.

“Eles convocaram os vigias” gritou Kate com descrença, como se isso de alguma forma não fosse justo.

“O que é que estavas à espera?” respondeu Sophia. “Nós estamos a fugir antes de nos conseguirem vender.”

Kate liderou o caminho por estreitos degraus de calçada abaixo, e, depois, em direção a um espaço aberto repleto de pessoas. Sophia forçou-se a abrandar quando elas se aproximaram do mercado da cidade, segurando o antebraço de Kate para evitar que ela corresse.

Vamos misturar-nos mais se nГЈo estivermos a correr, Sophia enviou, com pouco fГґlego para falar.

Kate nГЈo parecia tГЈo certa, mas ainda assim ela acompanhou o ritmo de Sophia.

Elas caminharam lentamente, passando por pessoas que se afastavam, obviamente nГЈo querendo arriscar o contacto com alguГ©m de origens tГЈo humildes quanto elas. Talvez eles pensassem que as duas haviam sido libertadas para alguma incumbГЄncia.

Sophia forçava-se a parecer como se estivesse apenas a passear enquanto elas usavam a multidão para camuflagem. Ela olhou em volta, para a torre do relógio acima do templo da Deusa Mascarada, para as várias bancas e para as lojas com montras de vidro para lá delas. Havia um grupo de atores num canto da praça, representando um dos contos tradicionais em trajes elaborados, enquanto um dos censores assistia da borda da multidão circundante. Num contentor estava um recrutador para o exército, a tentar recrutar tropas para a mais recente guerra a apoderar-se desta cidade, uma batalha iminente no Canal da Faca-Água.

Sophia viu a sua irmГЈ a olhar para o recrutador e puxou-a para trГЎs.

NГЈo, Sophia enviou. Isso nГЈo Г© para ti.

Kate estava prestes a responder quando, de repente, os gritos começaram novamente por detrás delas.

Ambas começaram a correr.

Sophia sabia que ninguГ©m as iria ajudar agora. Era Ashton, o que significava que ela e Kate Г© que estavam mal ali. NinguГ©m iria tentar ajudar duas fugitivas.

Na verdade, quando ergueu os olhos, Sophia viu alguém começar a dirigir-se a elas, para as bloquear. Ninguém iria deixar duas órfãs escaparem das suas obrigações, do que elas eram.

Mãos tentavam agarrá-las, e agora elas tinham de lutar para conseguirem passar. Sophia deu uma palmada numa mão no seu ombro, enquanto Kate espetou violentamente com seu atiçador roubado.

Um espaço abriu-se em frente a elas e Sophia viu a sua irmã correr para uma seção de andaimes de madeira abandonados ao lado de um muro de pedra, onde os construtores deviam ter andado a tentar endireitar uma fachada.

Mais escalada? Sophia enviou.

Eles nГЈo nos vГЈo seguir, ripostou a sua irmГЈ.

O que provavelmente era verdade, sГі porque o grupo de pessoas comuns que as percorriam nГЈo iria arriscar a sua vida assim. Todavia, Sophia temia-o. No entanto, ela nГЈo conseguiu pensar em ideias melhores naquele momento.

As suas mãos que tremiam fecharam-se em torno das ripas de madeira dos andaimes, e ela começou a escalar.

Em questão de momentos, os seus braços começaram a doer-lhe, mas naquele momento ou continuava ou caía, e mesmo se não fosse pela calçada lá em baixo, Sophia não queria cair com a maioria da multidão a persegui-la.

Kate jГЎ estava Г  espera no topo, ainda a sorrir como se todo aquilo fosse algum jogo. A sua mГЈo estava lГЎ novamente, e ela puxou Sophia para cima. Seguidamente, elas estavam a correr novamente - desta vez nos telhados.

Kate ia à frente em direção a um fosso que levava a um outro telhado, saltando para o colmo como se ela não se importasse com o risco de continuar. Sophia seguia-a, mordendo o desejo de gritar quando quase escorregou, saltando com a sua irmã para cima de uma secção baixa, onde uma dúzia de chaminés deitavam fumo de um forno abaixo.

Kate tentou correr de novo, mas Sophia, sentindo uma oportunidade, agarrou-a e puxou-a para dentro do colmo, escondendo-se entre o amontoado.

Espera, ela enviou.

Para sua surpresa, Kate não discutiu. Ela tentava localizar-se enquanto elas tentavam comprimir-se para baixo na secção plana do telhado, ignorando o calor que vinha das chamas abaixo, e ela deve ter percebido o quão escondidas elas estavam. O fumo encobria praticamente tudo o que estava ao redor delas, colocando-as numa neblina, escondendo-as ainda mais. Era como uma segunda cidade aqui em cima, com linhas de roupas, bandeiras e galhardetes que forneciam toda a proteção que elas poderiam querer. Se ficassem quietas, ninguém as conseguiria ver aqui. Nem mais ninguém seria tolo o suficiente para arriscar caminhar no colmo.

Sophia olhou em redor. Era pacГ­fico aqui Г  sua prГіpria maneira. Havia lugares onde as casas estavam tГЈo prГіximas que os vizinhos conseguiam tocar uns aos outros, e, mais adiante, Sophia viu um penico de quarto a ser esvaziado para a rua. Ela nunca tinha tido a oportunidade de ver a cidade deste Гўngulo, as torres do clero e os fabricantes de tiro, os guardiГµes do relГіgio e os sГЎbios erguendo-se sobre o resto da cidade, o palГЎcio localizado no seu prГіprio anel de muralhas como carbГєnculo a brilhar sobre a pele do resto.

Ela ficou ali encolhida com a sua irmã, com os seus braços envoltos em torno de Kate, e esperou que os sons da perseguição passassem lá em baixo.

Talvez, elas encontrassem uma saГ­da.




CAPГЌTULO TRГЉS


A manhã desvaneceu para a tarde, antes que Sophia e Kate ousassem sair do seu esconderijo. Tal como Sophia tinha pensado, ninguém se tinha atrevido a trepar para os telhados para as procurar, e apesar dos sons da perseguição se terem aproximado, nunca chegaram suficientemente perto.

Agora, eles pareciam ter desaparecido completamente.

Kate espreitou para fora e olhou para a cidade lá em baixo. A agitação da manhã tinha desaparecido, substituída por um ritmo e uma multidão mais relaxada.

“Precisamos sair daqui” sussurrou Sophia para a irmã.

Kate assentiu. “Estou faminta.”

Sophia conseguia entender isso. A maçã roubada há muito que havia desaparecido, e a fome estava a começar a fazer barulhos no seu estômago também.

Elas desceram ao nГ­vel da rua, e Sophia deu por si a olhar em redor. Apesar dos sons das pessoas que as perseguiam terem desaparecido, uma parte de si estava convencida de que alguГ©m iria saltar para cima delas no momento em que os seus pГ©s tocassem no chГЈo.

Elas iam escolhendo o seu caminho pelas ruas, tentando ficar longe de vista o mГЎximo que conseguiam. PorГ©m, era impossГ­vel evitar as pessoas em Ashton, simplesmente porque havia imensas. As freiras nГЈo se tinham preocupado muito em ensinar-lhes muito sobre a forma do mundo, mas Sophia tinha ouvido que havia cidades maiores para lГЎ dos Estados Mercantis.

Naquele momento, era difícil acreditar nisso. Para onde quer que ela olhasse havia pessoas em todos os lugares, embora, a maioria da população da cidade tivesse que estar dentro, trabalhando arduamente, neste momento. Havia crianças a brincar na rua, mulheres a irem e a virem de mercados e lojas, e trabalhadores a carregarem ferramentas e escadotes. Havia tabernas e casas de jogos, lojas que vendiam café das terras recém-descobertas para lá do Oceano Espelhado, cafés onde as pessoas pareciam quase tão interessadas em falar como em comer. Ela mal conseguia acreditar ao ver pessoas a rirem-se, felizes, tão despreocupadas, não fazendo nada senão fazer passar o tempo e divertindo-se. Ela mal conseguia acreditar que tal mundo pudesse existir. Era um contraste chocante com o silêncio forçado e a obediência do orfanato.

HГЎ tanta coisa, Sophia enviou para a sua irmГЈ, olhando para as bancas de comida por todos os lugares, sentindo a sua dor de estГґmago a crescer a cada cheiro que passava.

Kate estava a olhar para tudo com um olho prático. Ela escolheu um dos cafés, indo na sua direção com cautela, enquanto as pessoas lá fora se riam de um aspirante a filósofo que tentava discutir sobre o quanto era possível realmente conhecer do mundo.

“Seria mais fácil para ti se não estivesses bêbado” interrompeu um deles agressivamente.

Outro virou-se para Sophia e Kate quando elas se aproximaram. A hostilidade ali era palpГЎvel.

“Nós não queremos pessoas como vocês aqui” chacoteou ele. “Vão-se embora!”

A enorme raiva de tal era mais do que Sophia tinha esperado. Ainda assim, ela arrastou-se de volta para a rua, puxando Kate para si, para que a sua irmã não fizesse nada de que elas se arrependessem. Ela podia ter deixado cair o atiçador algures ao fugir da multidão, mas ela seguramente tinha um olhar que dizia que ela queria bater em algo.

Elas nГЈo tinham escolha, entГЈo: elas teriam de roubar a sua comida. Sophia tinha esperado que alguГ©m lhes pudesse mostrar caridade. No entanto, ela sabia que nГЈo era assim que o mundo funcionava.

Estava na hora de elas usarem os seus talentos, ambas se aperceberam acenando com a cabeça uma para a outra em silêncio ao mesmo tempo. Elas colocaram-se em lados opostos de um beco, assistindo e esperando enquanto uma padeira trabalhava. Sophia esperou até a padeira conseguir ler os pensamentos dela e depois contou-lhe o que queria que ela ouvisse.

Oh nГЈo, pensou a padeira. Os pГЈezinhos. Como Г© que eu me pude esquecer de eles lГЎ dentro?

Mal a padeira teve o pensamento, Sophia e Kate entraram em ação, correndo para a frente no segundo em que a mulher virou as costas para voltar para dentro para os pãezinhos. Elas moveram-se rapidamente, cada uma arrebatando uma mão cheia de bolos, os suficientes para encherem as suas barrigas quase até rebentarem.

Ambas se agacharam atrás de um beco e mastigaram vorazmente. Em pouco tempo, Sophia sentiu a sua barriga cheia, uma sensação estranha e agradável, e uma que ela nunca tinha tido. A Casa dos Não Reclamados não acreditava em alimentar as suas custódias mais do que o mínimo.

Ela riu-se quando Kate tentou empurrar um bolo inteiro para dentro da sua boca.

O quГЄ? perguntou bruscamente a sua irmГЈ.

Г‰ simplesmente bom ver-te feliz, Sophia enviou de volta.

Ela não tinha a certeza quanto tempo essa felicidade iria durar. Ela mantinha-se vigilante a cada passo por causa dos perseguidores que poderiam estar atrás delas. O orfanato não quereria envolver mais esforços para recuperá-las do que elas valiam, mas nunca se sabia quando se tratava da vingança das freiras. No mínimo, elas deveriam manter-se afastadas dos vigias, e não apenas porque elas tinham escapado.

Os ladrГµes, afinal de contas, eram enforcados em Ashton.

Precisamos parar de parecer ГіrfГЈs fugitivas ou nunca seremos capazes de percorrer a cidade sem que as pessoas olhem e tentem nos apanhar.

Sophia olhou para a irmГЈ, surpreendida com o pensamento.

Queres roubar roupas? Sophia enviou de volta.

Kate assentiu.

Esse pensamento trouxe uma nota extra de medo e, no entanto, Sophia sabia que a sua irmГЈ, sempre prГЎtica, estava certa.

Ambas se levantaram ao mesmo tempo, armazenado os bolos extras à cintura. Sophia estava à procura de roupas, quando sentiu Kate a tocar-lhe no braço. Ela seguiu o seu olhar e viu: um varal com roupa, no alto de um telhado. Não estava vigiado.

Claro que nГЈo estaria, ela percebeu com alГ­vio. Quem, afinal de contas, iria vigiar um varal?

Mesmo assim, Sophia conseguia sentir o seu coração a bater enquanto elas trepavam para cima de outro telhado. Ambas fizeram uma pausa, olharam, e, depois, enrolaram o cordel do varal da mesma maneira que um pescador poderia ter puxado uma linha de peixe.

Sophia roubou um vestido exterior de lГЈ verde, juntamente com um vestido interior creme que provavelmente era o tipo de coisa que a esposa de um agricultor poderia usar, mas que ainda era insuportavelmente rico para ela. Para sua surpresa, a sua irmГЈ escolheu uma camisola interior, bermudas e gibГЈo, o que a deixava mais parecida com um rapaz de cabelo espetado do que a miГєda que ela era.

“Kate” reclamou Sophia. “Não podes andar a correr por aí com esse aspeto!”

Kate encolheu os ombros. “Não é suposto nenhuma de nós ter este aspeto. Eu preferia ficar confortável.”

Havia uma espécie de verdade nisso. As leis sumptuárias eram claras sobre o que cada nível da sociedade podia e não podia usar, os não reclamados e os órfãos. Aqui estavam elas, a transgredir mais leis, lançando os seus trapos para o lado, a única coisa que lhes era permitido vestir, e vestindo-se melhor do que estavam.

“Tudo bem” disse Sophia. “Não vou discutir. Além disso, talvez afaste aqueles que estão à procura de duas miúdas” disse ela com uma gargalhada.

“Eu não pareço um rapaz” ripostou Kate com uma indignação óbvia.

Sophia sorriu ao ouvir aquilo. Elas salvaram os seus bolos, meteram-nos nos seus novos bolsos e, juntas, saГ­ram.

Era mais difГ­cil sorrir com a parte seguinte; estavam ali tantas coisas que elas precisavam de fazer se quisessem realmente sobreviver. Elas tinham de encontrar abrigo, por um lado, e depois descobrir o que iam fazer e para onde iam.

Um passo de cada vez, lembrou-se ela a si mesma.

Elas voltaram para as ruas, e desta vez Sophia ia Г  frente, tentando encontrar um percurso atravГ©s da parte mais pobre da cidade, ainda demasiado perto do orfanato para o seu gosto.

Ela viu uma sГ©rie de casas queimadas lГЎ Г  frente, obviamente nГЈo recuperadas de um dos incГЄndios que Г s vezes varria a cidade quando o rio estava baixo. Seria um lugar perigoso para descansar.

Mesmo assim, Sophia dirigiu-se para elas.

Kate lançou-lhe um olhar inquisitivo e cético.

Sophia encolheu os ombros.

Perigoso Г© melhor do que nada, ela enviou.

Elas aproximaram-se com cautela. Assim que Sophia enfiou a cabeça na esquina, assustou-se quando um par de figuras surgiu dos destroços. Elas apareceram tão enegrecidas de fuligem, por permanecerem nos restos carbonizados que, por um momento, Sophia pensou que elas tinham estado no incêndio.

“Desapareçam! Deixem o nosso pedaço de terra em paz!”

Um deles correu para Sophia, e ela gritou ao dar um passo involuntГЎrio para trГЎs. Kate parecia como se talvez fosse lutar, mas, nesse momento, a outra figura puxou de uma adaga que brilhava muito mais do que qualquer outra coisa ali.

“Isto é a nossa reivindicação! Escolham a vossa própria ruína, ou vou pôr-vos a sangrar.”

As irmГЈs fugiram entГЈo, pondo tanta distГўncia entre elas e a casa quanto conseguiram A cada passo, Sophia tinha a certeza de conseguir ouvir os passos de bandidos com facas, ou vigias, ou freiras, algures atrГЎs delas.

Elas caminharam atГ© as pernas lhes doerem e a tarde ficar muito escura. Pelo menos elas ficavam consoladas por, a cada passo, estarem um passo mais longe do orfanato.

Finalmente, elas aproximaram-se de uma parte um pouco melhor da cidade. Por algum motivo, o rosto de Kate iluminou-se ao vГЄ-la.

“O que foi?” perguntou Sophia.

“A biblioteca do centavo” respondeu a sua irmã. “Nós podemos entrar lá à socapa. Às vezes, desvio-me sorrateiramente, quando as irmãs nos mandam fazer recados, e o bibliotecário deixa-me entrar, apesar de eu não ter o centavo para pagar.”

Sophia não tinha muita esperança de encontrar ajuda ali, mas a verdade era que ela não tinha nenhuma ideia melhor. Ela deixou Kate ir à frente, e dirigiram-se ambas para um espaço movimentado onde os prestamistas se misturavam com os defensores e havia até algumas carruagens misturadas com os cavalos e pedestres normais.

A biblioteca era um dos edifГ­cios maiores que ali estavam. Sophia conhecia a histГіria: que um dos nobres da cidade havia decidido educar os pobres e deixado uma parte de sua fortuna para construir o tipo de biblioteca que a maioria simplesmente mantinha trancada nas suas casas de campo. Claro, cobrar um centavo por uma visita ainda significava que os mais pobres nГЈo a conseguiam visitar. Sophia nunca tinha tido um centavo. As freiras nГЈo viam nenhum motivo em dar dinheiro Г s suas custГіdias.

Ela e Kate aproximaram-se da entrada, e ela viu um homem de idade ali, de aparГЄncia tranquila em roupas levemente desgastadas, obviamente tanto guarda como bibliotecГЎrio. Para surpresa de Sophia, ele sorriu quando elas se aproximaram. Sophia nunca tinha visto ninguГ©m feliz por ver a sua irmГЈ.

“Jovem Kate” disse ele. “Já não vens cá há algum tempo.” E trouxeste uma amiga. Percorram, percorram. Não vou impedir o conhecimento. O filho de Earl Varrish pode ter colocado um imposto de um centavo sobre o conhecimento, mas o velho conde nunca acreditou nisso.”

Ele parecia genuíno acerca disso, mas Kate já estava a abanar a cabeça.

“Isso não é o que nós precisamos, Geoffrey” disse Kate. “A minha irmã e eu... fugimos do orfanato.”

Sophia percebeu o choque no rosto do homem mais velho.

“Não” disse ele. “Não, vocês não devem fazer uma coisa tão insensata.”

“Já fizemos” disse Sophia.

“Então vocês não podem estar aqui” insistiu Geoffrey. “Se os vigias vierem e vos encontrarem aqui comigo, eles podem assumir que eu tive algum papel nisso.”

Sophia teria saГ­do naquele momento, mas parecia que Kate ainda queria tentar.

“Por favor, Geoffrey” disse Kate. “Eu preciso...”

“Vocês precisam de voltar” disse Geoffrey. “Implorem perdão. Tenho pena da vossa situação, mas é a situação que o destino vos entregou. Regressem antes que os vigias vos apanhem. Eu não vos posso ajudar. Eu posso até ser flagelado por não alertar os vigias que vos vi. Essa é toda a gentileza que vos posso dar.”

A voz dele era severa e, ainda assim, Sophia podia ver a bondade nos seus olhos, e que lhe causava dor dizer aquelas palavras. Quase como se ele estivesse a lutar consigo mesmo, como se ele estivesse a representar que era mau apenas para fazer prevalecer o seu ponto.

Mesmo assim, Kate parecia destroçada. Sophia odiava ver a irmã assim.

Sophia puxou-a para trГЎs, afastando-a da biblioteca.

Enquanto caminhavam, Kate, de cabeça para baixo, falou finalmente.

“E agora?” perguntou ela.

A verdade era que Sophia nГЈo tinha uma resposta.

Elas continuavam a caminhar, mas agora, ela estava cansada de andar tanto. Estava, também, a começar a chover daquela maneira pegada, o que sugeria que não iria parar tão em breve. Em poucos lugares chovia da maneira que chovia em Ashton.

Sophia deu por si a gravitar pelas inclinadas ruas de calçada em direção ao rio que atravessava a cidade. Sophia não tinha a certeza do que esperava encontrar lá, entre as barcaças e os botes de fundo plano. Ela duvidava que os estivadores ou as putas lhes fossem úteis, e estas pareciam ser as principais coisas que esta parte da cidade tinha. Mas pelo menos era um destino. Se nada mais, elas poderiam encontrar um lugar para se esconderem nas suas margens e observar o pacífico navegar dos navios e sonhar com outros lugares.

Por fim, Sophia viu um beiral com pouca profundidade perto de uma das muitas pontes da cidade. Ela aproximou-se. Ela ficou atordoada com o mau cheiro, assim como Kate, e com a infestação de ratos. Mas o seu cansaço fazia com que o pior pedaço de abrigo fosse um palácio. Elas tinham de sair da chuva. Elas tinham de se esconder. E naquele momento, o que é que mais havia ali? Elas tinham de encontrar um lugar onde mais ninguém, nem mesmo os vagabundos, ousassem ir. E era isso.

“Aqui?” perguntou Kate, com repulsa. “Não podemos voltar para a chaminé?”

Sophia abanou a cabeça. Ela duvidava que a conseguissem encontrar novamente, e mesmo se conseguissem, seria o lugar onde qualquer perseguidor começaria a procurar. Este era o melhor lugar que elas iriam encontrar antes que a chuva piorasse e antes que a noite caísse.

Ela sossegou e tentou esconder as suas lГЎgrimas para bem da sua irmГЈ.

Lentamente, com relutância, Kate sentou-se ao lado dela, agarrando-se aos joelhos com os braços e balançando-se, como se para afastar a crueldade e a barbárie e a descrença do mundo.




CAPГЌTULO QUATRO


Nos sonhos de Kate, os seus pais ainda estavam vivos, e ela estava feliz. Sempre que sonhava, parecia que eles estavam lГЎ, embora os rostos fossem apenas memГіrias de coisas construГ­das, apenas com o medalhГЈo para as guiar. Kate nГЈo tinha idade suficiente para mais do que isso quando tudo mudou.

Ela estava numa casa algures no campo, onde a vista das janelas de vitrais abrangia pomares e campos. Kate sonhava com o calor do sol na sua pele, com a suave brisa que se agitava atravГ©s das folhas lГЎ fora.

A parte seguinte nunca parecia fazer sentido. Ela não sabia o suficiente dos detalhes, ou não se lembrava deles. Ela tentou forçar o seu sonho a dar-lhe toda a história do que tinha acontecido, mas, em vez disso, o seu sonho apenas lhe deu fragmentos:

Uma janela aberta, com estrelas lá fora. A mão da sua irmã, a voz de Sophia na sua cabeça, a dizer-lhe para se esconder. À procura dos seus pais pela confusão da casa...

A esconder-se pela casa no escuro. A ouvir os sons de alguém a mover-se por ali. Havia luz além, embora fosse noite lá fora. Ela sentiu que estava perto, a ponto de descobrir o que finalmente tinha acontecido com os seus pais naquela noite. A luz da janela começou a ficar cada vez mais brilhante, e...

“Acorda” disse Sophia, sacudindo-a. “Estás a sonhar, Kate.”

Os olhos de Kate abriram-se com ressentimento. Os sonhos eram sempre muito melhores do que o mundo em que ela vivia.

Ela piscou os olhos encandeada com a luz. Por milagre, a manhГЈ tinha chegado. O primeiro dia na sua vida a dormir uma noite inteira fora do fedor e dos gritos das paredes do orfanato, a primeira manhГЈ na sua vida a acordar algures, num lugar qualquer, noutro lugar qualquer. Mesmo num lugar hГєmido e frio como este, ela estava extasiada.

Ela reparou não apenas na diferença da luz débil da tarde; era a forma como o rio em frente delas tinha surgido para a vida, com as barcaças e os barcos a apressarem-se para fazer a maior distância que conseguissem pelo rio acima. Alguns moviam-se com pequenas velas, outros com varas que os empurravam ou com cavalos que os rebocavam pelas margens do rio.

Ao redor delas, Kate conseguia ouvir o resto da cidade a acordar. Os sinos do templo faziam soar as horas, enquanto, entretanto, ela conseguia ouvir a conversa das pessoas de toda uma cidade que se dirigia para o trabalho ou partia para outras viagens. Hoje era o Primeiro Dia, um bom dia para começar as coisas. Talvez isso também significasse boa sorte para ela e para Sophia.

“Eu continuo a ter o mesmo sonho” disse Kate. “Continuo a sonhar... sobre aquela noite.”

Elas pareciam sempre parar antes de o chamar mais do que isso. Era estranho, quando provavelmente elas conseguiam comunicar mais diretamente do que qualquer outra pessoa na cidade, que ela e Sophia ainda hesitassem em conversar sobre isto.

A expressГЈo de Sophia ficou sombria, e Kate imediatamente sentiu-se mal por isso.

“Eu também sonho com isso às vezes” admitiu Sophia tristemente.

Kate virou-se para ela, concentrada. A sua irmГЈ tinha de saber. Ela era mais velha, ela teria visto mais.

“Tu sabes o que aconteceu, não sabes?” perguntou Kate. “Tu sabes o que aconteceu com os nossos pais.”

Era mais uma declaração do que uma pergunta.

Kate examinou o rosto da sua irmГЈ para obter respostas, e ela viu-o, apenas um movimento vacilante, algo que ela estava a esconder.

Sophia abanou a cabeça.

“Há coisas sobre as quais é melhor não pensar. Precisamos de nos concentrar no que acontece a seguir, não no passado.”

Não era exatamente uma resposta satisfatória, mas não era mais do que Kate tinha esperado. Sophia nunca não falava sobre o que tinha acontecido na noite em que os pais delas tinham partido. Ela nunca o quis discutir, e mesmo Kate tinha de admitir que se sentia desconfortável sempre que pensava nisso. Além disso, na Casa dos Não Reclamados, não gostavam quando as órfãs tentavam falar sobre o passado. Chamavam-lhe de ingratidão, e era apenas mais uma coisa digna de punição.

Kate sacudiu um rato de cima do seu pГ© e sentou-se mais direita, olhando ao redor.

“Não podemos ficar onde estamos” disse ela.

Sophia assentiu.

“Nós vamos morrer se ficarmos aqui pelas ruas.”

Era um pensamento duro, mas provavelmente era verdadeiro também. Havia tantas maneiras de morrer nas ruas desta cidade. O frio e a fome eram apenas o início da lista. Com os gangues de rua, os vigias, as doenças e todos os outros riscos nas ruas, até o orfanato começava a parecer seguro.

NГЈo que Kate alguma vez fosse voltar. Ela destrui-lo-ia antes de voltar a passar pelas suas portas. Talvez um dia ela o destruГ­sse, de qualquer maneira. Ela sorriu com isso.

Sentindo uma dor de fome, Kate tirou o último pedaço do seu bolo e começou a devorá-lo. Então ela lembrou-se da sua irmã. Ela arrancou uma metade e entregou-lha.

Sophia olhou para ela esperançosa, mas sentindo-se culpada.

“Não faz mal” mentiu Kate. “Eu tenho outro no meu vestido.”

Sophia aceitou-o com relutância. Kate sentiu que a sua irmã sabia que ela estava a mentir, mas ela estava com demasiada fome para negar. A ligação delas era tão próxima, que Kate conseguia sentir a fome da sua irmã, e Kate nunca se permitiria a estar feliz se a sua irmã não estivesse.

Finalmente, ambas saГ­ram do seu esconderijo.

“Então, irmã mais velha” perguntou Kate, “alguma ideia?”

Sophia suspirou com tristeza e abanou a cabeça.

“Bem, estou a morrer de fome” disse Kate. “Será melhor pensar de barriga cheia.”

Sophia concordou, e ambas se dirigiram para as ruas principais.

Em pouco tempo, elas encontraram um alvo - um padeiro diferente - e roubaram o pequeno-almoço como tinham roubado a sua última refeição. Enquanto elas se esquivavam para um beco e se empanturravam, era tentador pensar que conseguiriam viver o resto das suas vidas assim, usando seu talento partilhado para levar o que precisavam quando ninguém estava a prestar atenção. Mas Kate sabia que não poderia funcionar assim. Nada bom durava para sempre.

Kate olhou para a agitação da cidade diante de si. Era esmagadora. E as suas ruas pareciam não acabar.

“Se não podemos ficar nas ruas” disse ela, “o que fazemos? Para onde vamos?”

Sophia hesitou por um momento, parecendo tГЈo insegura quanto Kate.

“Eu não sei” admitiu ela.

“Bem, o que é que podemos fazer?” perguntou Kate.

NГЈo parecia uma lista tГЈo longa como deveria ter sido. A verdade era que ГіrfГЈs como elas nГЈo obtinham escolhas nas suas vidas. Elas estavam preparadas para vidas onde eram contratadas como aprendizes ou servas, soldadas ou pior. NГЈo havia uma verdadeira expectativa de que elas alguma vez fossem livres, porque mesmo aqueles que genuinamente procuravam uma aprendiza apenas pagariam uma misГ©ria; nunca o suficiente para pagarem a sua dГ­vida.

E a verdade era que Kate tinha pouca paciГЄncia para costurar ou cozinhar, etiqueta ou retrosaria.

“Nós poderíamos encontrar um comerciante e tentar aprender por nós próprias” sugeriu Kate.

Sophia abanou a cabeça.

“Mesmo se conseguíssemos encontrar alguém disposto a nos levar, ele iria quer ouvir as nossas famílias primeiro. Quando não conseguíssemos arranjar um pai para nós, nesse momento eles iriam saber o que nós éramos.”

Kate tinha de admitir que a sua irmГЈ tinha razГЈo.

“Bem, então, poderíamos alistar-nos como trabalhadoras nas barcas, e conhecer o resto do país.”

Mesmo enquanto o dizia, ela sabia que isso provavelmente era tГЈo ridГ­culo quanto a sua primeira ideia. Um capitГЈo de uma barca ainda iria fazer perguntas, e, provavelmente, qualquer perseguidor de ГіrfГЈs fugidias iria vigiar as barcas Г  procura daquelas que tentavam escapar. Elas certamente nГЈo podiam confiar noutra pessoa para as ajudar, nГЈo depois do que tinha acontecido na biblioteca, com o Гєnico homem nesta cidade que ela tinha considerado um amigo.

Que idiota ingГ©nua ela tinha sido.

Sophia parecia tambГ©m ter captado a enormidade do que estava diante delas. Ela estava a olhar para o longe com uma expressГЈo melancГіlica no rosto.

“Se pudesses fazer alguma coisa” perguntou Sophia, “se pudesses ir a algum lugar, onde é que irias?”

Kate nГЈo tinha pensado nisso naqueles termos.

“Não sei” disse ela. “Quero dizer, nunca pensei mais do que sobreviver ao dia.”

Sophia ficou em silГЄncio durante bastante tempo. Kate conseguia senti-la a pensar.

Finalmente, Sophia falou.

“Se tentarmos fazer algo normal, haverá tantos obstáculos como se tentássemos fazer as coisas mais extraordinárias do mundo. Talvez ainda mais, porque as pessoas esperam que pessoas como nós se contentem com menos. Portanto o que é que queres, mais do que qualquer outra coisa?”

Kate pensou nisso.

“Eu quero encontrar os nossos pais” disse Kate, apercebendo disso ao dizê-lo.

Ela conseguiu sentir o lampejo de dor que atravessou Sophia ao ouvir aquelas palavras.

“Os nossos pais estão mortos” disse Sophia. Ela parecia ter tanta certeza que Kate queria voltar a perguntar-lhe o que tinha acontecido naquela época. “Lamento, Kate. Não foi isso que eu quis dizer.”

Kate suspirou amargamente.

“Eu não quero que ninguém volte a controlar o que eu faço” disse Kate, escolhendo a coisa que ela queria quase tanto quanto o regresso dos seus pais. “Eu quero ser livre, verdadeiramente livre.”

“Eu também quero isso” disse Sophia. “Mas há muito poucas pessoas verdadeiramente livres nesta cidade. As únicas são verdadeiramente...”

Ela olhou para a cidade e, seguindo o seu olhar, Kate viu que ela estava a olhar para o palácio, com o seu mármore brilhante e as suas decorações douradas.

Kate conseguia sentir o que ela estava a pensar.

“Não me parece que ser uma serva no palácio te fosse libertar” disse Kate.

“Eu não estava a pensar em ser uma serva” disse Sophia. “E se... e se conseguíssemos lá entrar e ser uma delas? E se conseguíssemos convencê-los a todos que éramos? E se casássemos com um homem rico, e tivéssemos ligações à corte?”

Kate nГЈo se riu, mas sГі porque conseguiu perceber o quГЈo sГ©ria a sua irmГЈ estava sobre toda aquela ideia. Se ela pudesse ter qualquer coisa no mundo, a Гєltima coisa que Kate quereria seria entrar no palГЎcio e se tornar numa grande senhora, casar com algum homem que lhe dissesse o que fazer.

“Eu não quero que a minha liberdade dependa de mais ninguém” disse Kate. “O mundo ensinou-nos uma coisa, e apenas uma coisa: devemos depender de nós próprios. Somente de nós próprios. Dessa forma, podemos controlar tudo o que nos acontece. E não temos que confiar em ninguém. Temos de aprender a cuidar de nós próprios. A aguentarmo-nos. A viver da terra. A aprender a caçar. A cultivar. Qualquer coisa em que não dependamos de mais ninguém. E temos que acumular grandes armas e tornarmo-nos grandes lutadoras, de modo a que se alguém vier para nos tirar o que é nosso, os possamos matar.”

E de repente, Kate percebeu.

“Precisamos de nos ir embora desta cidade” apelou ela à sua irmã. “Está cheia de perigos para nós. Precisamos de viver fora da cidade, no campo, onde poucas pessoas vivem e onde ninguém será capaz de nos fazer mal.”

Quanto mais ela falava no assunto, mais ela percebia que era a coisa certa a fazer. Era o seu sonho. Naquele momento, Kate não queria mais do que correr para os portões da cidade, para os espaços abertos para lá da cidade.

“E quando aprendermos a lutar” acrescentou Kate, “quando nos tornarmos maiores e mais fortes e com as melhores espadas, arcos e punhais, voltaremos aqui e mataremos todos os que nos fizeram mal no orfanato.”

Ela sentiu as mГЈos de Sophia no seu ombro.

“Não podes falar assim, Kate. Não podes simplesmente falar em matar pessoas, como se não fosse nada.”

“Não é como se não fosse nada” disse Kate violentamente. “É o que eles merecem.”

Sophia abanou a cabeça.

“Isso é primitivo” disse Sophia. “Existem melhores maneiras de sobreviver. E melhores maneiras de obter vingança. Além disso, eu não quero apenas sobreviver, como uma qualquer camponesa na floresta. Então qual é o propósito da vida? Eu quero viver.”

Kate nГЈo sabia muito bem, mas ela nГЈo disse nada.

Elas caminharam em silГЄncio um pouco, e Kate imaginava que Sophia estivesse tГЈo arrebatada nos seus sonhos quanto Kate. Elas caminharam pelas ruas cheias de pessoas que pareciam saber o que estavam a fazer com as suas vidas, que pareciam cheias de sentido, e para Kate, era injusto que fosse tГЈo fГЎcil para elas. Mas entГЈo, mais uma vez, talvez nГЈo fosse. Talvez aquelas pessoas tivessem tГЈo pouca escolha quanto ela ou Sophia tivessem tido se tivessem ficado no orfanato.

Lá à frente, a cidade estendia-se além dos portões que provavelmente estavam ali há centenas de anos. O espaço além era agora preenchido com casas, pressionadas diretamente contra as muralhas de uma maneira que provavelmente as tornava inúteis. Porém, havia um espaço aberto a seguir, onde vários camponeses levavam o seu gado para o abate, ovelhas, gansos, patos e até algumas vacas. Havia também vagões de mercadorias, esperando para entrar na cidade.

E a seguir a isso, no horizonte sГі havia floresta. Floresta para a qual Kate ansiava escapar.

Kate viu a carruagem antes de Sophia. Estava a tentar passar pelos veículos que estavam à espera, os ocupantes obviamente a assumir que tinham o direito de ser os primeiros a entrar na cidade propriamente dita. Talvez eles tivessem. A carruagem era dourada e esculpida, com uma crista de família do lado que provavelmente teria feito sentido se as freiras tivessem pensado que valia a pena ensinar tais coisas. As cortinas de seda estavam fechadas, mas Kate viu uma a abrir-se com um puxão, revelando uma mulher lá dentro que espreitava por debaixo de uma elaborada máscara de cabeça de pássaro.

Kate sentiu-se cheia de inveja e indignação. Como é que alguns poderiam viver tão bem?

“Olha para eles” disse Kate. “Eles estão provavelmente a caminho de um baile ou de um baile de máscaras. Provavelmente nunca tiveram de se preocupar por terem fome nas suas vidas.”

“Não, nunca tiveram” concordou Sophia. Mas ela pareceu pensativa, talvez até a admirar.

EntГЈo Kate percebeu o que a sua irmГЈ estava a pensar. Ela virou-se para ela, horrorizada.

“Nós não podemos simplesmente segui-los” disse Kate.

“Por que não?” ripostou a sua irmã. “Porque não tentarmos obter o que queremos?”

Kate nГЈo tinha uma resposta para ela. Ela nГЈo quis dizer a Sophia que nГЈo iria resultar. Que nГЈo poderia resultar. Que nГЈo era assim que o mundo se encaixava. Eles iriam olhar para elas e perceber que elas eram ГіrfГЈs, perceber que eram camponesas. Como Г© que elas alguma vez poderiam esperar misturar-se num mundo como aquele?

Sophia era a irmГЈ mais velha; era suposto ela jГЎ saber isso.

Além disso, naquele momento, os olhos de Kate caíram em algo que era igualmente tentador para si. Havia homens a formarem-se perto do lado da praça, vestindo as cores de uma das companhias mercenárias que gostavam de se dedicar vagamente às guerras através da água. Eles tinham cavalos e armas dispostas em carroças. Alguns deles estavam mesmo a ter um improvisado torneio de esgrima com espadas de aço mal afiadas.

Kate olhou para as armas e viu o que ela precisava: armaria de aço. Adagas, espadas, bestas, armadilhas para caça. Com apenas algumas dessas coisas, ela conseguiria aprender a colocar armadilhas e a viver da terra.

“Não” disse Sophia, observando o olhar dela, colocando uma mão no braço dela.

Kate tirou-lhe a mão, mas gentilmente. “Vem comigo” disse Kate, determinada.

Ela viu a sua irmã sacudir a cabeça. “Sabes que não posso. Isto não é para mim. Não é quem eu sou. Não é o que eu quero, Kate.”

E tentar misturar-se com um grupo de nobres nГЈo era o que Kate queria.

Ela conseguia sentir a certeza da sua irmã, ela conseguia sentir a sua própria certeza, e ela teve uma sensação repentina de para onde é que aquilo se encaminhava. Sabê-lo causou-lhe lágrimas nos olhos. Ela abraçou a sua irmã, assim como a sua irmã a abraçou.

“Eu não te quero deixar” disse Kate.

“Eu também não te quero deixar”, respondeu Sophia, “mas talvez cada uma de nós precise tentar o seu próprio caminho, pelo menos por um tempo. És tão teimosa quanto eu, e cada uma de nós tem os seus próprios sonhos. Estou convencida de que consigo fazê-lo e que depois consigo ajudar-te.”

Kate sorriu.

“E eu estou convencida de que eu consigo e que depois consigo ajudar-te.”

Kate também viu lágrimas nos olhos da sua irmã, mas, mais do que isso, ela conseguiu sentir a tristeza através da ligação que elas partilhavam.

“Tens razão” disse Sophia. “Tu não irias encaixar na corte, e eu não iria encaixar num ermo ou a aprender a lutar. Então talvez tenhamos de fazer isto separadamente. Talvez as nossas melhores hipóteses de sobrevivência sejam ficarmos separadas. Pelo menos, se uma de nós for apanhada, então a outra pode ir salvá-la.”

Kate queria dizer a Sophia que ela estava errada, mas a verdade era que tudo o que ela estava a dizer fazia sentido.

“Eu vou encontrar-te depois” disse Kate. “Eu vou aprender a lutar e a viver no campo, e vou encontrar-te. Então tu verás, e virás juntar-te a mim.”

“E eu vou encontrar-te quando atingir o que pretendo na corte” respondeu Sophia com um sorriso. “Vais-te juntar a mim no palácio e casar com um príncipe, e governar esta cidade.”

Ambas sorriram largamente, com as lágrimas a roçarem as suas bochechas.

Mas nunca estarГЎs sozinha, acrescentou Sophia, com as palavras a tocarem na mente de Kate. Eu estarei sempre tГЈo prГіxima quanto um pensamento.

Kate nГЈo conseguia mais suportar a tristeza, e ela sabia que tinha de agir antes de ela mudar de ideia.

Então ela abraçou a sua irmã uma última vez, soltou-a e correu na direção das armas.

Tinha chegado o momento de arriscar tudo.




CAPГЌTULO CINCO


Sophia conseguia sentir a determinação a arder dentro de si enquanto atravessava Ashton, na direção do recinto murado onde o palácio se localizava. Ela correu pelas ruas, esquivando-se de cavalos e ocasionalmente saltando para a parte de trás de vagões quando parecia que eles estavam a ir na direção certa.

Mesmo com isso, demorava tempo a atravessar a extensГЈo do lugar, passando pelo Screws, pelo QuarteirГЈo Mercantil, pela Colina Knotty e pelos outros distritos, um a um. Eram tГЈo estranhos e cheios de vida para Sophia, apГіs o seu tempo na Casa dos NГЈo Reclamados, que ela desejava ter mais tempo para explorГЎ-los. Ela deu por si do lado de fora de um grande teatro circular, desejando que houvesse tempo suficiente para entrar.

No entanto, nГЈo havia, porque, se ela perdesse o baile de mГЎscaras hoje Г  noite, ela nГЈo sabia bem como Г© que ela iria encontrar o lugar que queria na corte. Um baile de mГЎscaras, do que ela sabia, nГЈo aparecia muito frequentemente, e oferecer-lhe-ia a sua melhor oportunidade de entrar sorrateiramente.

Ela estava preocupada com Kate enquanto ia. Era estranho depois de tanto tempo, simplesmente caminhar em direções opostas. Mas a verdade era que elas queriam coisas diferentes das suas vidas. Sophia iria encontrá-la, quando terminasse o que tinha para fazer. Quando ela tivesse uma vida instalada entre os nobres de Ashton, ela iria encontrar Kate e iria fazer com que tudo ficasse bem.

Os portões para o recinto murado onde era o palácio estavam à frente. Como Sophia esperava, eles estavam abertos para a noite, e depois deles, ela conseguia ver os jardins formais dispostos em fileiras arranjadas de sebes e rosas. Havia mesmo grandes extensões de relva, aparada mais baixa do que qualquer terreno de agricultores, e isso em si parecia um sinal de luxo quando alguém na cidade que tinha um pedaço de terra ao lado da sua casa precisava usá-lo para cultivar alimentos.

Havia lanternas montadas em postes a cada poucos passos dentro dos jardins. Elas ainda não estavam iluminadas, mas à noite, iriam transformar todo o lugar numa lâmpada de luz brilhante, deixando as pessoas dançarem no relvado tão facilmente quanto numa das fantásticas salas do palácio.

Sophia conseguia ver as pessoas a dirigirem-se para dentro, uma após a outra. Havia um servo com uma farda dourada junto ao portão, juntamente com dois guardas no mais brilhante azul, com os seus mosquetes ao ombro numa exibição perfeita de uma parada, enquanto os nobres e seus servos passavam.

Sophia apressou-se para o portão. Ela tinha esperado conseguir perder-se numa multidão de pessoas que entravam, mas quando lá chegou, ela era a única. Isso significou que o servo conseguiu dar-lhe toda a atenção. Ele era um homem mais velho com uma peruca coberta de pó que se encaracolava até à sua nuca. Ele olhou para Sophia com algo que se aproximou do desdém.

“E o que é que tu queres?” ele exigiu saber, num tom tão astuto que poderia ter sido o de um ator a representar um nobre, em vez de o servo da realeza.

“Estou aqui para o baile” disse Sophia. Ela sabia que nunca poderia passar por uma nobre, mas ainda havia coisas que ela podia fazer. “Eu sou a serva de...”

“Não te envergonhes” ripostou o servo. “Eu sei perfeitamente bem quem é suposto entrar, e nenhum deles se iria incomodar em ser acompanhado por uma serva como tu. Não estamos a deixar entrar prostitutas das docas. Não é esse tipo de festa.”

“Eu não sei o que queres dizer com isso” tentou Sophia, mas a má cara que ela obteve contou-lhe que aquilo não estava nem perto de resultar.

“Então permite-me que te explique” disse o servo na porta. Ele parecia estar a divertir-se. “O teu vestido parece ter sido cortado de um de uma peixeira. Tu fedes como se tivesses acabado de sair de uma fossa. Quanto à tua voz, parece que tu nem sequer és capaz de soletrar elocução, quanto mais usá-la. Agora, vai-te embora, antes que tenhas de fugir e ser atirada para uma cela e passares lá a noite.”

Sophia queria discutir, mas a crueldade das palavras dele pareceu roubar tudo de si. Mais do que isso, elas haviam roubado o seu sonho, tГЈo facilmente como se o homem se tivesse esticado e o arrancado do ar. Ela virou-se e correu, e a pior parte foi a gargalhada que a seguiu pela rua fora.

Sophia parou numa porta mais adiante, completamente humilhada. Ela nГЈo tinha esperado que fosse fГЎcil, mas tinha esperado que alguГ©m na cidade fosse gentil. Ela tinha pensado que seria capaz de passar por serva, mesmo se nГЈo conseguisse passar por uma nobre.

PorГ©m, talvez tivesse sido erro seu. Se ela estava a tentar reinventar-se, nГЈo deveria ela seguir o caminho completo? Talvez nГЈo fosse tarde demais. Ela nГЈo conseguia passar pelo tipo de serva que acompanhava a sua senhora ao baile, mas ela conseguia passar pelo quГЄ? Ela podia ser o que quase tinha sido quando saiu do orfanato. O tipo de empregada a quem seria dado o mais inferior dos trabalhos.

Isso podia resultar.

A ГЎrea ao redor do palГЎcio era um lugar de casas nobres, mas tambГ©m de todas as coisas que os seus donos poderiam desejar da cidade: costureiras, joalheiros, casas de banhos e muito mais. Tudo coisas que Sophia nГЈo podia pagar, mas tudo coisas que ela poderia conseguir de qualquer maneira.

Ela começou com uma costureira. Era a maior parte daquilo, e, talvez, quando ela tivesse o vestido, o resto fosse mais fácil. Ela entrou na loja que parecia a mais ocupada, a ofegar como se estivesse prestes a entrar em colapso, esperando que tudo corresse bem.

“O que estás a fazer aqui?” perguntou uma mulher de cabelo grisalho, olhando para cima com uma boca cheia de alfinetes.

“Perdoa-me...” disse Sophia. “A minha senhora... ela vai-me açoitar se o vestido dela se atrasar mais... ela disse... para correr todo o caminho.”

Ela nГЈo podia passar por uma serva que acompanhava a sua senhora, mas ela podia ser a serva contratada daquela nobre, enviada para recados de Гєltima hora.

“E o nome da tua senhora?” quis saber a costureira.

Г‰ esta o tipo de serva que Milady D'Angelica realmente enviaria? Talvez seja porque elas sГЈo do mesmo tamanho e ela deseja saber se lhe vai servir?

O talento de Sophia foi espontГўneo. Ela teve bom senso o suficiente para nГЈo o questionar.

“Milady D'Angelica” disse ela. “Perdoa-me, mas ela disse para me apressar. O baile...”

“Na verdade, não começará durante a próxima hora ou duas, e duvido que a tua senhora deseje lá estar até ao momento de fazer uma entrada” respondeu a costureira. O seu tom era agora um pouco menos duro, embora Sophia suspeitasse que era só por causa de quem ela estava a fingir servir. A outra mulher apontou. “Espera ali.”

Sophia esperou, embora isso fosse a coisa mais difГ­cil de fazer no mundo naquele momento. Isso deu-lhe uma oportunidade de ouvir, pelo menos. O servo no palГЎcio estava certo: as pessoas falavam efetivamente de maneira diferente das partes mais pobres da cidade. As suas vogais eram mais arredondadas, as bordas das palavras mais polidas. Uma das mulheres que trabalhava ali parecia ter vindo de um dos Estados Mercantis, com o seu sotaque a fazer com que os seus 'erres' rolassem enquanto ela conversava com os outros.

NГЈo demorou muito para que a costureira original aparecesse com um vestido, segurando-o para que Sophia o inspecionasse. Era a coisa mais bonita que Sophia jГЎ havia visto. Brilhava de prata e azul, parecendo cintilar quando se movia. O corpete era trabalhado com fio de prata, e atГ© mesmo os saiotes cintilavam em ondas, o que parecia um desperdГ­cio. Quem os veria?

“Milady D'Angelica e tu são do mesmo tamanho, sim?” quis saber a costureira.

“Sim, minha senhora” respondeu Sophia. “Foi por isso que ela me enviou.”

“Então ela deveria logo ter-te enviado ao início, em vez de enviar apenas uma lista de medidas.”

“Vou certificar-me que lho digo” disse Sophia.

Tal fez a costureira ficar pГЎlida de pavor, como se sГі o pensamento fosse suficiente para lhe poder provocar um ataque cardГ­aco.

“Não há necessidade disso. Está muito perto, mas eu só preciso ajustar algumas coisas. Tens a certeza de que és do tamanho dela?”

Sophia assentiu. “Ao centímetro, minha senhora. Ela faz com que eu coma exatamente o mesmo que ela para que permaneçamos iguais.”

Era um detalhe doido e tolo para se inventar, mas a costureira pareceu engoli-lo. Ela acreditava que talvez fosse o tipo de extravagГўncia que uma nobre pudesse ter. Fosse como fosse, ela fez os ajustes tГЈo rapidamente que Sophia mal podia acreditar, entregando-lhe finalmente um pacote embrulhado num papel padronizado.

“A despesa vai para a conta de Milady?” perguntou a costureira. Havia uma nota de esperança ali, como se Sophia pudesse ter o dinheiro consigo, mas Sophia apenas pôde assentir. “Claro, claro. Eu acredito que Milady D'Angelica ficará satisfeita.”

“Eu tenho a certeza que sim” disse Sophia. Ela praticamente correu para a porta.

Na verdade, ela tinha certeza de que a nobre ficaria furiosa, mas Sophia nГЈo planeava estar por perto para essa parte.

Ela tinha outros lugares para ir, por um lado, e outros pacotes para 'recolher' em nome da sua 'senhora'.

Num sapateiro, ela recolheu botas do mais fino couro pálido, realçadas com linhas gravadas que mostravam uma cena da vida da Deusa sem Nome. Num vendedor de perfumes, ela adquiriu um pequeno frasco que cheirava como se o seu servo tivesse de alguma forma destilado a essência de tudo o que era bonito numa combinação perfumada.

“É o meu trabalho mais extraordinário!” ele proclamou. “Espero que Lady Beaufort goste.”

Em cada paragem, Sophia escolhia uma nova nobre da qual ser serva. Isso era simples pragmatismo: ela não conseguia garantir que Milady D'Angelica estivesse estado em todas as lojas da cidade. Em algumas das lojas, ela escolheu os nomes através dos pensamentos dos donos. Noutras, quando o seu talento não chegava, ela tinha de manter a conversa a pairar até eles fazerem suposições ou, num caso, até ela conseguir olhar furtivamente de cima a baixo para um livro de registo no balcão da loja.

Parecia ser cada vez mais fácil, quanto mais ela roubava. Cada peça precedente da sua roupa roubada servia como uma espécie de credencial para a próxima, porque, obviamente, aqueles outros lojistas não teriam dado coisas à pessoa errada. Quando ela chegou à loja onde vendiam máscaras, o lojista estava praticamente a pressionar as suas mercadorias para as mãos dela antes de ela atravessar as portas. Era uma meia máscara de ébano esculpido, cena após a cena da Deusa Mascarada que buscava hospitalidade realçada com penas ao redor das bordas e pontos de joias ao redor dos olhos. Elas provavelmente foram concebidas para parecer que os olhos de quem as usava estava a brilhar com a luz refletida.

Sophia sentiu um pequeno lampejo de culpa quando a levou, acrescentando-a à pilha de pacotes não negligenciáveis ​​nos seus braços. Ela estava a roubar de tantas pessoas, levando coisas que elas haviam trabalhado para produzir, e que outros haviam pago. Ou pagariam, ou não teriam exatamente pago; Sophia ainda não tinha considerado as formas como os nobres pareciam comprar coisas sem pagar por elas.

Porém, era apenas um breve lampejo de culpa, porque todos eles tinham tanto em comparação com as órfãs na Casa dos Não Reclamados. As joias desta máscara teriam sido suficientes para mudar as vidas deles.

Por enquanto, Sophia precisava de mudar de roupa, e nГЈo podia entrar na festa ainda imunda por dormir Г  beira do rio. Ela caminhou ao redor das casas de banho, esperando atГ© encontrar uma com carruagens Г  espera Г  porta e que anunciasse banhos separados para senhoras de qualidade. Ela nГЈo tinha moedas para pagar, mas, de qualquer maneira, dirigiu-se atГ© Г s portas ignorando o olhar que o proprietГЎrio grande e musculado lhe deu.

“A minha senhora está lá dentro” disse ela. “Ela disse-me para ir buscar tudo para quando ela terminasse de tomar banhar, ou haveria problemas.”

Ele olhou para ela de cima abaixo. Mais uma vez, os pacotes nas mãos de Sophia pareciam funcionar como um passaporte. “Então, é melhor entrares, não é? Os vestiários ficaram à tua esquerda.”

Sophia foi atГ© eles, colocando os seus prГ©mios roubados numa sala que estava quente com o vapor dos banhos. As mulheres iam e vinham enroladas nas toalhas que serviam para as secar. Nenhuma delas olhou duas vezes para Sophia.

Ela despiu-se, embrulhando-se numa toalha e dirigindo-se aos balneГЎrios. Eles tinham um estilo que favorecia a ГЎgua, com mГєltiplas piscinas quentes, mornas e frias, com massagistas no lado e servos Г  espera.

Sophia estava muito ciente da tatuagem no tornozelo proclamando o que ela era, mas havia ali servas contratadas com as suas senhoras para massajГЎ-las com Гіleos perfumados ou para lhes pentear o cabelo. Se alguГ©m notasse a marca, obviamente assumiriam que Sophia estava ali por essa razГЈo.

Mesmo assim, ela nГЈo aproveitou o tempo para se deleitar nos banhos que ela poderia ter. Ela queria sair dali antes que alguГ©m fizesse perguntas. Ela mergulhou sob a ГЎgua, esfregando-se com sabГЈo e tentando tirar o pior da sujidade de si. Ao sair do banho, ela certificou-se de que a sua toalha chegava atГ© aos seus tornozelos.

De volta ao vestiário, ela juntou o seu novo ser num passo de cada vez. Ela começou com meias de seda e saiotes, depois colocou o espartilho e outras saias exteriores, luvas e mais.

“A minha senhora precisa de ajuda com o seu cabelo?” perguntou uma mulher, e Sophia viu do outro lado uma serva a olhar para si.

“Se faz favor” disse Sophia, tentando lembrar-se de como os nobres falavam. Ocorreu-lhe que isto seria mais fácil se ninguém pensasse que ela era dali, então ela acrescentou um toque do sotaque dos Estados Mercantis que tinha ouvido na costureira. Para sua surpresa, ele apareceu facilmente, com a sua voz a ajustar-se tão depressa quanto o resto se tinha ajustado.

A miúda secou e entrançou os seus cabelos num nó elaborado que Sophia mal conseguiu seguir. Quando terminou, ela colocou a máscara no lugar, depois dirigiu-se para fora, fazendo o caminho entre as carruagens que ali estavam até encontrar uma que não estivesse ocupada.

“Tu aí!” disse ela, com a sua nova voz a parecer estranha aos seus ouvidos naquele momento. “Sim, tu! Leva-me ao palácio imediatamente e não pares no caminho. Estou com pressa. E não comeces a pedir o dinheiro. Podes enviar a conta para Lord Dunham e ele pode dar-se por satisfeito de ser tudo o que eu lhe estou a custar esta noite.”

Ela nem sabia se havia um Lord Dunham, mas o nome pareceu-lhe bem. Ela esperava que o motorista da carruagem discutisse, ou pelo menos regateasse a tarifa. Em vez disso, ele simplesmente fez uma vГ©nia.

“Sim, minha senhora.”

O passeio de carruagem pela cidade foi mais confortГЎvel do que Sophia poderia ter imaginado. Foi mais confortГЎvel do que saltar para a parte de trГЎs dos vagГµes, certamente, e muito mais curto. Em questГЈo de minutos, ela viu os portГµes a aproximarem-se. Sophia sentiu-se apreensiva porque era ainda o mesmo servo que estava lГЎ a trabalhar. SerГЎ que ela iria conseguir? SerГЎ que ele a iria reconhecer?

A carruagem abrandou, e Sophia forçou-se a debruçar-se, esperando parecer como deveria.

“O baile já está em plena atividade?” quis ela saber com o seu novo sotaque. “Cheguei no momento certo para causar um impacto? Mais diretamente ao ponto, como é que eu estou? Os meus servos dizem-me que isto é adequado para a tua corte, mas eu sinto que pareço uma prostituta das docas.”

Ela não conseguiu resistir àquela pequena vingança. O servo do portão fez uma vénia acentuada.

“A minha senhora não poderia ter chegado em melhor altura” assegurou ele, com o tipo de falsa sinceridade que Sophia imaginava que os nobres gostassem. “E ela parece absolutamente adorável, é claro. Por favor, entra.”

Sophia fechou a cortina da carruagem quanto esta seguiu em frente, mas sГі porque assim escondia o seu alГ­vio atordoado. Isto estava a resultar. Estava mesmo a resultar.

Ela sГі esperava que as coisas tambГ©m estivessem a resultar com Kate.




CAPГЌTULO SEIS


Kate estava a desfrutar da cidade mais do que ela teria pensado ser possГ­vel sozinha. Ela ainda estava a sofrer com a perda da sua irmГЈ, e ela ainda queria sair para o campo aberto, mas, por enquanto, Ashton era o seu recreio.

Ela atravessou as ruas da cidade, e havia algo particularmente atraente em estar perdida nas multidГµes. NinguГ©m olhava para ela mais do que olhavam para os outros diabretes ou aprendizes, filhos mais novos ou aspirantes a lutadores da cidade. Com a sua roupa arrapazada e com o cabelo espetado, Kate poderia ter passado por qualquer um deles.

Havia tanto para ver na cidade, e não apenas os cavalos aos quais Kate lançava um olhar cobiçoso sempre que passava por um. Ela fez uma pausa em frente a um vendedor que vendia armas de caça num vagão, as bestas leves e os mosquetes ocasionais que pareciam impossivelmente grandiosos. Se Kate conseguisse ter roubado uma, ela teria, mas o homem mantinha um olhar atento a todos os que se aproximavam.

No entanto, nem todos eram tão cuidadosos. Ela conseguiu arrebatar um pedaço de pão de uma mesa de café, uma faca de onde alguém a tinha usado para fixar um panfleto religioso. O seu talento não era perfeito, mas saber onde os pensamentos e a atenção das pessoas estavam era uma grande vantagem quando se tratava da cidade.

Ela continuou, à procura de uma oportunidade para apanhar mais do que ela precisaria para a vida no campo. Era primavera, mas isso significava apenas chuva em vez de neve na maioria dos dias. Do que é que ela precisaria? Kate começou a verificar as coisas nos seus dedos. Um saco, um torçal para fazer armadilhas para animais, uma besta se ela conseguisse obter uma, um oleado para se proteger da chuva, um cavalo. Definitivamente, um cavalo, apesar de todos os riscos que o roubo de cavalos trazia.

Não que nada disso fosse verdadeiramente seguro. Havia forcas em alguns dos cantos que seguravam os ossos de criminosos mortos há muito tempo, preservados para que a lição pudesse durar. Sobre um dos portões antigos, arruinado na última guerra, havia três crânios em espigões que eram supostamente do chanceler traidor e dos seus conspiradores. Kate indagou-se como é que qualquer pessoa sabia mais.

Ela cedeu um olhar para o palácio ao longe, mas só porque esperava que Sophia estivesse bem. Esse tipo de lugar era para os gostos da rainha viúva e dos seus filhos, dos nobres e dos seus servos a tentarem ignorar os problemas do mundo real com as suas festas e as suas caças, não pessoas reais.

“Ei, rapaz, se tiveres uma moeda para gastar, eu dou-te um bom momento” disse uma mulher na porta de uma casa cujo propósito era óbvio, mesmo não tendo nenhum letreiro. Um homem que poderia ter lutado com ursos estava à porta, enquanto Kate conseguia ouvir os sons das pessoas a divertirem-se demais, mesmo ainda não estando escuro.

“Eu não sou um rapaz” ripostou ela.

A mulher encolheu os ombros. “Eu não sou exigente. Ou entra e ganha algumas moedas. Os velhos libertinos gostam das arrapazadas.”

Kate prosseguiu, nГЈo dignificando isso com uma resposta. Essa nГЈo era a vida que ela tinha planeado para si mesma. Nem era roubar para ganhar tudo o que queria.

Havia outras oportunidades que pareciam mais interessantes. Para onde quer que ela olhasse, parecia que havia recrutadores para uma ou outra das companhias livres, declarando o seu alto salário em relação às outras, ou as suas melhores rações, ou a glória a ser conquistada nas guerras por toda a Água-Faca.

Kate aproximou-se mesmo de um deles, um homem de aparГЄncia amГЎvel nos seus cinquenta anos, usando um uniforme que parecia mais adequado Г  ideia de guerra de um jogador do que Г  coisa real.

“Ei aí, rapaz! Estás à procura de aventura? De arrojo? Da possibilidade de morte nas espadas dos teus inimigos? Bem, vieste ao lugar errado!”

“Ao lugar errado?” perguntou Kate, nem sequer se importando que ele também tinha pensado que ela era um rapaz.

“O nosso general é Massimo Caval, o mais famosamente cauteloso dos homens lutadores. Nunca se envolve a menos que possa ganhar. Nunca desperdiça os seus homens em confrontos infrutíferos. Nunca...”

“Então estás a dizer que ele é um covarde?” perguntou Kate.

“Um covarde é a melhor coisa para se ser numa guerra, acredita” disse o recrutador. “Seis meses a correr à frente das forças inimigas enquanto elas ficam entediadas, com apenas saques ocasionais para animar as coisas. Pensa nisso, a vida, a ... espera, tu não és um rapaz, pois não?”

“Não, mas eu ainda posso lutar” insistiu Kate.

O recrutador abanou a cabeça. “Não para nós, tu não podes. Desaparece daqui e não me chateies!”

Apesar da sua defesa de covardia, o recrutador parecia estar pronto a segurar Kate pela cabeça se ela ficasse ali, pelo que ela continuou a andar.

Muitas coisas na cidade faziam pouco sentido. A Casa dos Não Reclamados tinha sido um lugar cruel, mas pelo menos tinha possuído um tipo de ordem. Frequentemente, na cidade, parecia que as pessoas faziam o que queriam, com pouca contribuição dos governantes da cidade. A própria cidade certamente parecia não ter nenhum plano para isso. Kate atravessou uma ponte que tinha sido construída com tendas e estrados e até pequenas casas até mal haver espaço para usá-la para o propósito pretendido. Ela deu por si a andar pelas ruas que se enrolavam em si mesmas, em becos que de alguma forma se tornavam os telhados das casas que estavam numa elevação mais baixa e que depois davam lugar às escadas.

Quanto às pessoas nas ruas, toda a cidade parecia insana. Parecia haver alguém a gritar em todos os cantos, declarando os elementos da sua filosofia pessoal, exigindo atenção pelo desempenho que estavam prestes a colocar, ou denunciando o envolvimento do reino nas guerras por toda a água.

Kate baixou-se ao entrar pelos portГµes quando viu as figuras mascaradas de sacerdotes e freiras a ocupar-se do negГіcio inescrutГЎvel da Deusa Mascarada, mas depois da terceira ou quarta vez ela continuou a andar. Ela viu um a agitar uma corrente de prisioneiros, e ela deu por si a questionar-se sobre qual parte da piedade da deusa tal representava.

Havia cavalos por toda a cidade. Eles puxavam carruagens, eles erguiam cavaleiros, e alguns dos maiores puxavam carroças cheias de tudo desde pedra a cerveja. Vê-los era uma coisa; roubar um era outra coisa bem diferente.

No final, Kate escolheu um lugar ao pé de uma loja de estrebaria, aproximando-se e esperando pelo seu momento. Para roubar algo tão grande como um cavalo, ela precisava de mais do que apenas um momento de falta de atenção, mas, em princípio, não era diferente de roubar uma tarte. Ela conseguia sentir os pensamentos dos trabalhadores da estrebaria ​​enquanto vagueavam de um lado para o outro. Um estava a trazer para fora uma égua com bom aspeto, pensando na mulher nobre para a qual ela estava destinada.

Maldição, ela vai precisar de uma sela lateral, não disto.

O pensamento era todo o convite que Kate precisava. Ela avançou quando o rapaz da estrebaria correu de volta para dentro, provavelmente pensando que ninguém conseguiria levar um cavalo no breve espaço de tempo em que ele se ausentasse. Kate abriu caminho entre os pedestres que desarrumavam a rua, imaginando o momento em que as suas mãos finalmente agarrassem as rédeas...

“Apanhei-te!” disse uma voz quando uma mão se agarrou ao ombro dela.

Por um momento, Kate pensou que alguГ©m tivesse adivinhado o que ela pretendia fazer, mas, quando a figura que apanhou Kate a virou para ele, ela reconheceu a verdade: era um dos rapazes do orfanato.

Ela contorceu-se para fugir, e ele bateu-lhe com força no estômago. Kate caiu de joelhos e viu dois outros rapazes a chegarem rápido.

“Eles mandaram-nos atrás de ti quando tu fugiste” disse o mais velho. “Disseram que as miúdas iam por mais do que os rapazes, e que eles poderiam enviar perseguidores para todos nós, se necessário.”

Ele parecia amargurado com isso, e Kate nГЈo o culpava. A Casa dos NГЈo Reclamados era um lugar malГ©fico, mas tambГ©m era o Гєnico lar que os ГіrfГЈos tinham.




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